Projeto conecta pessoas surdas à cultura afrodiaspórica
Axé Libras rompe racismo através da tradução do iorubá para a língua de sinais
Passei o mês de fevereiro em Salvador (BA) e, entre as muitas trocas que a cidade me proporcionou nesse período,conheci o trabalho do Wermerson Silva. Ele era o intérprete em libras no encontro entre o Cortejo Afro e o Ilê Ayiê, em um show da Concha Negra que tive o prazer de assistir. Através do projeto “Axé Libras” e do grupo de pesquisa “Construindo o Saber Èdé Lamí”, o professor Dr. e babalorixá cria sinais-termos para traduzir o Iorubá e o Banto - gerando acessibilidade à cultura afrodiaspórica para pessoa surdas.
Filho de mãe professora de educação inclusiva, Wermerson teve seu primeiro contato com libras há 30 anos e já atua como intérprete há 18 - puxando a pauta antirracista. Ele me falou da origem europeia da língua de sinais e da apropriação evangélica, o que gerou uma série de sinais-termos pejorativos para tratar das religiões de matrizes africanas. O que, graças ao seu trabalho, está mudando.
Assim que soube da história de Wermerson, me acendeu a curiosidade de saber como funciona esse processo de tradução e busquei o seu contato para que pudesse contar sobre isso aqui na Firma Preta. Conversamos por mais de uma hora e o resultado desse papo super interessante está aqui:
FP: Como você se tornou intérprete em libras? O que te levou para esse caminho?
W: Eu aprendi libras bem jovem porque minha mãe era professora de educação inclusiva. Com 18 anos eu comecei a fazer trabalhos de interpretação em associações e clínicas como intérprete comunitário. Depois da Lei 10.436/2002, que oficializa o ensino da libras no Brasil, a coisa foi acontecendo de maneira mais intensa e comecei também a buscar minha trajetória acadêmica. Eu sou autodidata, nunca tinha feito um curso, busquei um exame de proficiência para ter título de qualificação.
Em 2005, o decreto 5626/05, tornou obrigatório o ensino de libras nos cursos de licenciatura. Então, eu estava terminando o curso de pedagogia e fiz o concurso para a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Mesmo seguindo o caminho acadêmico continuei atuando como intérprete. Em 2011, ao trabalhar na conferência de cultura da Bahia, me deparei com a escassez de sinais -termos afrodiaspóricos. Mesmo assim, as pessoas acompanhavam e dançavam as músicas com palavras em iorubá. Aquilo me emocionou e me fez prometer criar um grupo de pesquisa quando fosse aprovado no concurso da UESB. Assim, em 2013, nasceu o Construindo o Saber Èdé Lamí e desse projeto de extensão surgiu o Axé Libras.
Eu sempre busquei as encruzilhadas e as encruzilhadas me levaram a ser intérprete de libras. Minha vida é atravessada por muita correria, eu sou babalorixá, tenho um terreiro para dar conta em Vitória da Conquista, tenho a universidade, coordeno um curso de pedagogia EAD, mas eu não quero abrir mão do que eu amo que é ser intérprete.
FP: Como nasceu o Axé Libras?
W: No Construíndo o Saber Èdé Lamí, fizemos um estudo para saber se havia produção sobre o tema no Brasil. Não encontramos nada. Então somos pioneiros nesse movimento. O Axé Libras é fruto desse trabalho, um fruto da universidade, mas não está diretamente ligado a ela. É uma empresa que conta com seis colaboradores e também um canal onde disseminamos conhecimento através do compartilhamento dos sinais-termos. Quando a universidade aprovou o projeto eu percebi que eu precisava me empenhar nos estudos afrodiásporicos e que deveria ter um desdobramento. Eu comecei a fazer as gravações para atender a nossa angústia de não encontrar os sinais -termos para esse tipo de conteúdo.
Meu trabalho é de militância também porque é o intérprete quem vai levar a comunicação para as pessoas surdas. Se eu estou na universidade atravessado por quatro paredes eu já não gosto desse lugar. Eu penso que precisamos estar nas ruas, nas praças, nos eventos das artes. No começo era muito difícil contar com ajuda dos surdos nesses debates. Por conta de racismo e intolerância, muitos topavam participar só nos bastidores. Hoje já contamos com esse apoio.
No projeto, nós veneramos Ewa, que é a orixá intérprete. Além de Exu que é Orixá da comunicação e Ogum que faz a comunicação acontecer. Eu sou de uma vertente que acredita que para você ser intérprete de uma cultura você precisa tirar seu chinelo e colocar o pé naquele território ancestral. Então, ainda que o Axé Libras tenha um glossário,você precisa estar com o pezinho ali. Eu não vou deixar um evangélico fazer essa interpretação nesse lugar. Eles não pegam o axé libras para estudar. Há de fato uma interpretação do iorubá, mas há outros fatores de axé que nos atravessam.
Eu não estou dizendo que eu tenho que estar em todos os lugares, mas alertando as empresas e os intérpretes de que precisa ter uma conexão. Não é só receber o repertório do show e se preparar porque quando eu interpreto a cantiga de Exu em Iorubá, eu tenho que ter um conhecimento religioso para isso, para gerar uma conexão com todos que estão ali, surdos ou ouvintes.
As pessoas brancas ainda estão nesses espaços de poder. Toda a nossa construção comunitária não acessa alguns espaços. Nós ainda precisamos ser conhecidos. O que fortaleceu o trabalho foi o movimento antirracista no período pandemico. Hoje alguns projetos exigem a presença de um interprete negro.
FP: Qual a metodologia para traduzir os sinais termos?
W: Vou te dar um exemplo, eu faço um recorte das letras de cantigas na língua iorubá e banto, coloco em pauta as traduções de sinais-termos com uma rede de pessoas que atuam no projeto que é formada por Ekedes, Ogãs, babalorixás, yalorixás e pessoas surdas de axé. Debatemos a tradução não literal, mas sim sistematizada - com muito agô para manusear essas energias. A partir daí, penso em português os sinais que vão representar esse repertório. É preciso muito estudo. Eu não deixo de estudar o Iorubá. Também utilizamos o dicionário Ioruba/Inglês do professor Dr. e babalorixá Marcio de Jagun para pensar conceitualmente os sinais-termos.
Nós estudamos sobre criação de léxicos que contribuem para a criação da nossa tabela terminológica. E o registro e validação do termo se dá através da utilização deles pelas comunidades. O glossário vai ganhando força com as nossas publicações, participações nos shows, o conteúdo do canal do youtube e disseminação do nosso trabalho em espaços com a Firma Preta.
FP: Como se dá a relação das pessoas surdas com o trabalho do Axé Libras?
W: A língua de sinais tem uma origem francesa devido a vinda de Eduard Huet, surdo, professor e fundador do Instituto Nacional de Educação de Surdos no Rio de Janeiro. A sua didática adotou modelos de aprendizagem com uso da língua de sinais. Porém os evangélicos se aprofundaram muito e começaram a enxergar os surdos como pessoas a serem catequizadas e muitos intérpretes são desse lugar. E antes do axé libras eles usavam termos pejorativos para falar do candomblé. Então, os surdos e surdas se distanciaram. Ainda há intérpretes que se recusam a fazer a interpretação de sinais de orixás e termos afrobrasileiros.
Com o Axé Libras, pessoas de diferentes lugares passaram a ter contato com a nossa cultura. Surdos começaram a se iniciar no candomblé. Hoje eu tenho cinco filhos surdos iniciados no candomblé. O Axé Libras acolhe todas as pessoas surdas e ouvintes que através do canal começaram a compreender o candomblé. Hoje eles dizem que querem estar nesse lugar de conhecimento e saber todo o processo espiritual.
Nos shows que trabalhamos, eles levantam, começam a dançar e jogam toda a sua emoção ali. Dizem que estão arrepiados e que aquilo toca o coração. Além da letra, existe a percussão, existem instrumentos que eles sentem no corpo por conta da vibração.
Temos muitos pedidos de gravações de materiais e músicas no Axé Libras. As pessoas querem aprender. É um trabalho de tartaruga, passos lentos, mas meu intuito é que mais pessoas façam essa interpretação.
Vagas da Edição
Dinheiro. O Centro Lemann, fundação de equidade na educação, busca por gestor de captação de recursos com no mínimo cinco anos de experiência. O trabalho é remoto, com contratação PJ até dezembro de 2024 e possibilidade de CLT em 2025. Inscrições até 29 de março. Informações no link.
Negócios. O SENAC-RJ procura por assessor técnico na área de negócios com experiência em tecnologia e sistemas educacionais. O salário é de R$13mil, com carga horária de 40h e regime presencial baseado em Jacarepaguá. Mais informações no link.
Social I. A Farmax abre vaga afirmativa para analista de responsabilidade social e diversidade. É preciso ter superior completo em psicologia, serviço social, comunicação ou áreas correlatas. O trabalho é remoto. Inscrições até 23 de março.
Social II. A Fundação Abrinq procura pedagogo para o cargo de analista de projetos sociais com experiência em educação infantil. A contratação é CLT e presencial. Inscrições até 31 de março.
Justiça I. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento procura assessor técnico para a prevenção e enfrentamento do racismo no judiciário. É preciso ter diploma nas áreas de ciências humanas e experiência de sete anos. Mais informações no link.
Justiça II. O Tribunal Regional Eleitoral da Bahia abre processo seletivo de estágio para estudantes de ensino médio e superior. O valor das bolsas varia de R$600 a R$900. Inscrições até 1º de abril.
Jurídico. Zambo Advogados está com oportunidade para Assistente Jurídico I, no modelo híbrido. É necessário experiência de pelo menos um ano na área trabalhista. Enviar currículo para michele.costa@zamboadvogados.com.br
Comunicação. Até 25 de março é possível se candidatar na vaga para assessoria de comunicação e mobilização da ACT Promoção de Saúde, ONG que atua na mobilização de políticas públicas de prevenção ao tabagismo e álcool. A vaga é CLT e pede experiência mínima de oito anos. Informações no link.
Mídias. A Agência Mural de Jornalismo das Periferias está em busca da nova pessoa analista de mídias sociais para se juntar à equipe – preferência por mulheres negras. Ficou interessada? Saiba mais sobre a vaga e se inscreva no link.
Moda. A Oaz, plataforma de cocriação e lifestyle, procura por assistente de estilo com experiência em construção de produto, modelagem, costura e acabamentos. O regime de trabalho é híbrido baseado em São Paulo. Mais informações no link.
Estágio. A Uzoma está em busca da nova pessoa estagiária em RH. Confira os detalhes das vagas no link.
Terceiro Setor I. A Despertar está com oportunidade para Auxiliar Administrativo, Técnica em Nutrição e estágio em TI. Confira os detalhes das vagas nos links.
Terceiro Setor II. O Instituto Desiderata está em busca da nova pessoa Diretora Programática. A profissional selecionada ficará responsável por gerenciar a área Programática do Instituto, que inclui Oncologia, Obesidade, Educação à Distância (EAD), Dados e Advocacy. Para saber mais informações da vaga, acesse o link.
Para Pensar
Nossa presença em lugares que não esperam que a gente ocupe, nos torna referência. A vitória de pessoas negras nunca é individual. No mínimo, serve de inspiração para que alguém. Veja a história do Marcelo Nascimento: